30.7.12

Hoje o céu está silencioso

Olhou para baixo e a visão alcançou os ténis gastos com a sola outrora branca. Bateu ao de leve com a ponta dos pés nas pequenas poças, estes últimos dias tinham sido muito chuvosos. Já estava farto de estar sentado na paragem de autocarro à espera da boleia que parecia não vir. Na rua deserta a estrada brilhava e o cheiro do alcatrão molhado reinava no ar. O relógio marcava apenas 17h27. O rapaz das solas gastas, depois de muito teste à paciência, decidiu pôr fim à espera e dar ainda mais uso aos ténis. As ruas continuavam vazias, o ambiente permanecia calmo. Há uma silhueta que lhe é familiar avistada em contra luz no beco estreito do outro lado da rua. Apressa-se a chegar àquela presença que tanto lhe captou a atenção. Por momentos pensou que a palavra saudade ia perder alguns dos arames farpados que conquistou mas era apenas um beco solitário. Conformando-se com o falso alarme que tinha soado, dobrou a esquina e retomou o seu curso. Sentia um aperto no peito, tudo nele estava vazio combinando assim com as ruas tristes e chorosas. O passeio estava sujo, observava enquanto caminhava. Algo o impediu de continuar no seu ritmo de pôr um pé em frente ao outro quase sempre no mesmo tempo. Uma zona da calçada estava espetada para fora, prendeu a sola do pé direito que com a força para continuar fez um buraco na zona do calcanhar. Passou à porta do café das janelas vermelhas, que lhe era tão familiar e onde nunca parava para marcar a sua presença mas, parou. Por alguma razão desta vez parou e olhou através do vidro limpo mas riscado com as marcas dos anos já passados. A silhueta do arame farpado estava sentada na mesa da ponta acompanhada consigo própria. O rapaz das solas gastas parou e os olhos cor de avelã da silhueta do arame farpado miraram-no e assim permaneceram com as pupilas alinhadas. Ele podia finalmente acabar com o aperto de a ter estragado, com o aperto de a ter feito fria. Ia pedir-lhe desculpas pelas palavras não cuidadas quando ignorava ao mundo aquela presença dos olhos cor de avelã. Mostrar o orgulho que sempre teve apesar de parecer adormecido. Dizer o nome dela sem pressões por ser a coisa mais natural de quando alguém se combina. Mostrar que sabia o aperto que lhe causou e que ela guardou para si, não por não ter quem o guardasse mas por querer resguardar a imagem que dava do rapaz das solas gastas. Apenas temia que aqueles de quem ela mais gosta deixassem de lhe gostar. Não há melhor prova de amor que esta troca de gostares. E ali estava ele, a olhar-lhe nos olhos com a vontade de finalmente cortar o arame farpado que à muito marcava dolorosamente o corpo e a mente. Ouve-se o som do autocarro. O rapaz das solas gastas está sentado na paragem, o relógio marcava apenas 17h27 e o cheiro do alcatrão molhado reinava no ar. Olha para a sola do pé direito e que, apesar de gasta, não tem nenhum buraco no calcanhar.

2 comentários:

Anónimo disse...

Encontrei o teu blog por acaso e prendi-me completamente a este conto, parabéns vou continuar a ler

Susana disse...

obrigada!